Fake News e Proteção de Dados

No início do mês de julho foi aprovado pelo Senado o Projeto de Lei nº 2630/2020 cujo objetivo é a criação da lei brasileira de liberdade, responsabilidade e transparência na Internet, popularmente conhecida como a “Lei das Fake News”.

De acordo com o texto legislativo, a finalidade deste regramento é o estabelecimento de normas e criação de mecanismos que fomentem a transparência dos provedores de redes sociais, tais como Facebook, Instagram, Youtube, assim como de serviços de mensageria privada (Whatsapp, Telegram), visando garantir a segurança e a ampla liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento.

Importante destacar que a propositura aparece em uma conjectura social bastante peculiar, comumente denominada como a “Era da hiperinformação” ou “Era Digital”, na qual há circulação de grande quantidade de notícias e informações, muitas vezes criadas sem lastro com a realidade e, em alguns casos, inclusive, com a finalidade de confundir e atender a interesses obscuros de grupos específicos, sem respeito à ética, à ciência e à transparência, o que possibilita que tal Era seja confundida com a denominada de Era da desinformação. No âmbito nacional, além do fortalecimento das prerrogativas e do discurso democrático, a proposição é justificada como uma forma de combater a disseminação das chamadas “Fake News” , em especial em períodos de eleição, garantindo, assim, a isonomia do pleito e evitando que pairem máculas e dúvidas sobre os resultados, com base nos fundamentos que decidiram cada voto, como recentemente ocorreu nas eleições presidenciais nos Estados Unidos.

Um ponto de atenção e de forte crítica é que o processo de aprovação da referida legislação não tardou muito e, por via de consequência não teve a maturação necessária, tampouco a participação efetiva das diversas entidades e associações que compõem a sociedade civil, podendo, dessa forma, resultar em um texto que não guarde relação com a realidade fática e não atenda aos anseios da sociedade, a qual irá legislar. Há, inclusive, uma forte crítica relacionada à possível supressão de direitos e garantias fundamentais previstas em nossa Constituição Federal e que são relacionadas à possível invasão de privacidade e ameaças à liberdade de expressão.

Como ponto de comparação, as legislações recentes que tratam de temas afetos ao mundo digital – a Lei do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) – tiveram inúmeros debates públicos ao longo dos anos de suas respectivas tramitações, com ampla participação da sociedade civil e especialistas, o que contribuiu fundamentalmente para o amadurecimento do tema e do texto de modo geral, trazendo a segurança jurídica esperada para um tema tão sensível.

Uma das carências mais relevantes na legislação, no meu ponto de vista e, portanto, passível de crítica é a ausência de previsão legal de sanção para a pessoa física que efetiva e propositadamente dissemina notícias falsas na internet, o que é uma grande falha em relação àquilo que a lei efetivamente se propõe a combater. O capítulo que trata especificamente das sanções traz em sua redação penalidades para somente os provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada, se omitindo completamente no que se refere a pessoa física. Por último, e talvez o mais importante, da forma como está posto hoje o texto da lei vai frontalmente contra duas garantias constitucionais que estão entre as mais sensíveis dentro do Estado Democrático de Direito: as garantias da privacidade e sigilo e da liberdade de expressão. Notadamente ao se avaliar o conteúdo da Lei das Fake News nos deparamos com o total desrespeito aos fundamentos previstos na Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD.

Vale destacar que não há sobreposição entre a LGPD e o texto sobre o qual se debate a criação da Lei das Fake News que, caso aprovada, terá a mesma posição hierárquica no ordenamento jurídico nacional, que é a de lei ordinária. No entanto, é inegável a sua conexão, visto que ambas abordam temas relacionados ao mundo digital, tema cada vez mais fundamental e premente em nossa sociedade atual.

Tratando da interconexão de assuntos, e é neste ponto que é possível se verificar desrespeito aos fundamentos da LGPD, há uma passagem no artigo 10 do PL 2630/2020 que dispõe sobre a permissão de rastreabilidade de metadados, com a indicação dos usuários que realizaram encaminhamentos em massa de mensagens, com data e horário do encaminhamento e a quantidade total de usuários que receberam a mensagem. A possibilidade indicada nesse artigo desrespeita alguns dos princípios previstos no artigo 6º da LGPD, tais como o da segurança, da prevenção e não discriminação, que garantem ao titular do dado segurança e proteção contra o acesso de seus dados pessoais. Por força do disposto neste parágrafo do artigo 10, campanhas espontâneas promovidas em diversas partes do Brasil e do mundo com a utilização de hashtags, tais como #Fiqueemcasa, #Usemáscara ou #BlacklivesMatter, têm o potencial de expor os usuários dessas mensagens ao rastreamento e à eventual exposição de dados pessoais, a depender do caso.

No que se refere ao mundo corporativo, existem diversas previsões que impactarão diretamente as empresas, notadamente logo de início, ao analisarmos o texto legislativo, se verifica que não há distinção entre pessoas físicas e jurídicas nas contas utilizadas em redes sociais e serviços de mensagens. Além da inexistência de conceituação entre pessoas físicas e jurídicas, há previsão que trata da existência de contas automatizadas para envio e recebimento de mensagens, as quais, na prática do dia a dia estão, em sua imensa maioria, vinculadas a empresas e não pessoas físicas. Outros aspectos que demonstram o direcionamento da norma proposta também às empresas são os conceitos de conteúdo, publicidade e impulsionamento, cuja criação, operação e custos geralmente também estão relacionados às empresas. Ainda nesse sentido, há um capítulo especial no texto que dispõe sobre a obrigatoriedade de identificação de todos os conteúdos impulsionados e publicitários, permitindo a identificação da conta responsável pelo impulsionamento e o acesso ao responsável pela conta de impulsionamento ou anunciante.

Neste racional, vale destacar a possibilidade e, na realidade o risco associado de funcionários utilizarem recursos, como computadores e internet corporativa para disseminar fakenews. Neste caso, existe a possibilidade de exposição e danos à imagem de uma empresa, cujo funcionário utilize os recursos, contas e acessos para impulsionamento e disseminação de Fake News, considerando que os provedores de redes sociais deverão identificar os conteúdos impulsionados, expondo a conta responsável pelo impulsionamento e o contato da conta responsável para tanto.

É importante destacar que além dos danos à reputação e à imagem de uma corporação ao ser associada à disseminação de conteúdo falso, o que por si só já é motivo de grande vigilância e criação de mecanismos para vedação de tais práticas, não há, no texto aprovado, menção ou tentativa de punição ao agente que individualmente agiu de modo a disseminar conteúdo falso, o que, conforme apontado acima, é uma grande falha no texto debatido.

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